Antibióticos em excesso causam resistência? Entenda o que pode prejudicar tratamentos

Principais combatentes das bactérias, os antibióticos mudaram o rumo da medicina e aumentaram a expectativa de vida. Mas um efeito chamado “resistência” — quando há perda da eficácia desses medicamentos — tem representado um desafio no tratamento de infecções. Como isso ocorre e o que pode ser feito?
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a resistência antimicrobiana — sobretudo, a bacteriana — é uma das principais ameaças globais à saúde pública.
Estudo publicado no ano passado aponta que, em 2021, 1,14 milhão de mortes foram diretamente atribuídas à resistência bacteriana. Até 2050, a estimativa é de que esse número chegue a 1,91 milhão por ano.
Situação no Brasil preocupa
As taxas de resistência no Brasil são “alarmantes” e estão entre as mais altas do mundo, segundo Alexandre Zavascki, médico infectologista no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, chefe do Serviço de Infectologia e Controle de Infecção no Hospital Moinhos de Vento e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Um estudo publicado em janeiro do qual ele é coautor, realizado em 14 hospitais brasileiros, revelou que 38,8% das infecções da corrente sanguínea associadas a cuidados de saúde continham bactérias resistentes a antimicrobianos consideradas prioritárias em termos de saúde pública pela OMS — um número que aumentou para 50% em UTIs. A mortalidade também foi maior nesses pacientes.
A pesquisa destaca um grave problema de saúde pública no país, exigindo ações urgentes para controlar o uso de antimicrobianos e prevenir infecções. O desenvolvimento de novos medicamentos também pode ajudar a evitar mortes.
Para combater a crescente dificuldade no controle de doenças, é crucial a conscientização sobre as causas da resistência e a importância do uso adequado (ou desnecessário) de medicamentos. Pensando nisso, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) lançou, no final de agosto, a campanha “Será que precisa? Evitando a resistência antimicrobiana por antibióticos e antifúngicos”.

Como surge a resistência
A resistência acontece, geralmente, quando a bactéria adquire genes de outras bactérias. Esses genes já existiam na natureza muito antes do desenvolvimento dos antibióticos — ou seja, não são criados pelo medicamento, como explica Zavascki.
Se essa bactéria encontra um ambiente propício, onde há grande uso de antibióticos, ela ganha vantagem seletiva sobre outras bactérias. Esse processo é chamado de pressão seletiva e está relacionado à seleção natural, em que as espécies mais adaptadas sobrevivem.
Trata-se, portanto, de um fenômeno populacional: populações de bactérias sensíveis aos efeitos dos remédios são eliminadas, enquanto as resistentes sobrevivem.
Com isso, o antibiótico normalmente prescrito pode não funcionar, levando ao prolongamento da doença e à necessidade de alterar o tratamento, conforme Ana Gales, médica infectologista e coordenadora do Comitê de Resistência Antimicrobiana da SBI. Em alguns casos de infecções graves, há chance de morte, pois pode não haver opção terapêutica adequada.
Higiene das mãos
Há casos menos comuns em que mutações genéticas nas próprias bactérias podem causar resistência. Em situações pontuais como a da tuberculose, a bactéria pode desenvolver resistência durante o tratamento, pela seleção de bacilos com essa mutação genética — especialmente se o tratamento não for seguido corretamente.
Em geral, os pacientes adquirem as bactérias multirresistentes em hospitais, por meio de contato físico direto com profissionais de saúde ou outros pacientes. Fatores como falta de higienização adequada (como lavagem das mãos) e de outras medidas de prevenção, como isolamento de pacientes, bem como superlotações, culminam na transmissão.
— A prevenção mais importante é a higienização das mãos. Essa é a medida mais simples e mais barata — ressalta Ana.
Os hospitais são, portanto, um dos locais mais preocupantes em relação às bactérias multirresistentes devido à vulnerabilidade dos pacientes e ao ambiente propício, com área restrita e alta concentração de antibióticos. Todos esses fatores podem resultar em surtos de contaminação. Zavascki reforça:
— O maior investimento hoje para diminuir a resistência seria otimizar a higienização dos hospitais.
Avanços no estudo das bactérias

Entender os mecanismos que conferem resistência é parte da tarefa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia — Saúde Ômica e Resistência Antimicrobiana (INCT-Somar), com sede no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, junto ao Laboratório de Pesquisa em Resistência Bacteriana (Labresis).
Os pesquisadores estudam os genes relacionados à resistência, além de identificar patógenos (organismos que causam doenças) e medicamentos que podem direcionar tratamentos. A estrutura presta apoio ao laboratório de rotina do hospital e analisa, por exemplo, cepas bacterianas que se disseminam.
No ambiente hospitalar, exames de identificação da bactéria são importantes. Contudo, o tratamento deve começar logo, antes mesmo do resultado, para o paciente não correr o risco de piorar, já que os exames costumam demorar até 48 horas devido ao tempo de crescimento das bactérias.
O laboratório, porém, já desenvolveu dois testes moleculares que reduzem esse tempo de processamento. Os exames são capazes de identificar a bactéria e a sensibilidade a determinados antibióticos — ambos com base em proteínas que surgem ainda antes do crescimento. A tecnologia utiliza um espectrômetro de massa e gera resultados em duas horas. O uso, entretanto, ainda está restrito à pesquisa.
— O papel do laboratório é crucial no combate ao problema da resistência aos antimicrobianos — afirma Afonso Barth, farmacêutico, coordenador do INCT-Somar e professor da UFRGS. — A atividade do laboratório precisa ser mais rápida do que é atualmente. É um conhecimento de pesquisa que faria muita diferença na rotina.
Tecnologia patenteada
O laboratório busca aplicar as pesquisas à rotina do hospital. O principal desafio, aponta Barth, é garantir que o rápido fluxo de informação seja efetivamente avaliado pela equipe que trata o paciente.
Kits comerciais de identificação rápida já estão disponíveis, mas, devido ao preço, costumam ser inacessíveis. O espectrômetro de massa também tem alto custo. Esses entraves inviabilizam a aquisição por laboratórios de pequeno e médio portes.
Por outro lado, é possível enviar a bactéria a ser identificada para um laboratório de grande porte — o HCPA recebe algumas amostras de outros locais. A tecnologia para isso, inclusive, foi patenteada pelo laboratório — utilizando um papel de filtro, é possível impregnar a massa bacteriana, inativá-la com álcool 70 e enviá-la pelo correio, sem perigo.
De acordo com o HCPA, a tecnologia de identificação rápida desenvolvida pelo INCT foi validada dentro do âmbito da pesquisa e já foi testada durante um período em exames de hemocultura (cultura bacteriológica). No entanto, para ser utilizada amplamente, ainda são necessários alguns ajustes, segundo a instituição.

Cuidados importantes com antibióticos
O uso recorrente ou desnecessário de antibióticos (para infecções que não são causadas por bactérias, por exemplo) também gera riscos: pode selecionar organismos resistentes, que continuarão no corpo e, no futuro, podem causar nova infecção, mais difícil de tratar. Isso também é válido para bactérias que naturalmente habitam o corpo e, por vezes, causam infecções.
Esse uso recorrente ou desnecessário pode, ainda, causar reações adversas. Quanto mais antibiótico, maior é a chance, salienta Ana. Além disso, bactérias resistentes terão a entrada facilitada em caso de exposição. Zavascki explica:
— O principal problema dos antibióticos em excesso é que eles eliminam as bactérias boas do organismo. Elas ocupam espaços em nós, não deixando chegar as resistências. Se você está tomando muito antibiótico, ele vai estar atingindo a infecção, mas também está atingindo as bactérias boas. É muito mais por isso do que uma criação de nova resistência a cada vez que alguém usa antibiótico.
O médico explica que situações pontuais não representam um grande problema, e sim o uso massivo. Pessoas que utilizam antibióticos com grande frequência já podem ter selecionado uma bactéria mais resistente.
Ignorar a dose correta e o tempo indicado de uso do antibiótico pode dificultar ou levar a uma falha no tratamento, possibilitando o retorno dos sintomas — além de também favorecer a seleção de bactérias resistentes, devido a doses mais baixas, como explica Ana.
No período de um tratamento curto, não necessariamente aparecerá uma bactéria resistente. Já tratamentos mais longos, que duram meses, como no caso da tuberculose, aumentam a exposição do paciente.
— Por isso, o antimicrobiano, quando é prescrito, deve ser utilizado pelo tempo e na dose que foi recomendada — frisa Ana.
Tratamentos mais curtos
Avanços na medicina desfizeram a crença de que interromper cedo o tratamento (quando há certeza da cura) gera resistência. Em muitos casos, as recomendações de administração de antibióticos já diminuíram de 14 dias para cinco ou sete dias. Zavascki afirma que a educação a respeito das mudanças deve ser reforçada junto aos médicos.
Os antibióticos, portanto, são um dos fatores de manutenção da resistência. Seu uso deve ocorrer quando e como necessário, evitando o uso recorrente e múltiplo, e sempre conforme a orientação do médico.
Fonte: GZh