Como um bumerangue do bem, a tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul gerou na contravolta uma avalancha de empatia, solidariedade e arrebatador sentimento de unidade nacional, proporcionais ao gigantismo físico e psicossocial da calamidade. Milhões de brasileiros, dos mais ricos aos remediados, puseram-se a conceder toda sorte de ajuda a seu alcance em favor de centenas de milhares de flagelados que da noite para o dia perderam tudo – exceto a fibra que sempre alentou chimangos e maragatos.

À medida que as águas baixam e o impacto da tragédia vai amainando, a tendência natural é de que as doações rareiem. Os solidários doam uma vez, e, com o senso de dever cumprido, voltam a cuidar de seus próprios problemas. Foi o que se verificou na pandemia de três anos da covid-19, quando legiões de necessitados, acostumando-se a receber ajuda, viram as doações minguarem lentamente.

O tsunami pluvial produziu estragos de efeitos bilionários em todos os setores das relações econômicas de produção e do tecido social do Rio Grande. Será necessário manter as medidas de socorro imediato já anunciadas pelo poder público, mas, a seguir, urge amealhar recursos para restaurar a normalidade, a partir da catástrofe visível e da que vai emergir na descida das águas.

Ao gaúcho sobra têmpera para tarefa tão grandiosa. Vimos a toda hora na TV que ninguém se dobra nem teme o futuro, pois estão acostumados a construí-lo. Mas a obra gigantesca da reconstrução demandará uma quantia astronômica, ainda incalculada, mas que seguramente somará muitos bilhões de reais. Somente a infraestrutura demandará entre R$ 110 bilhões e R$ 176 bilhões, segundo a Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul).

Neste cenário de terra arrasada, o grande salto à frente da empatia e da solidariedade, revestidas de dimensões sociais e políticas, será a Nação dirigir o sentimento de unidade já em curso para uma medida de fácil operação e custo mínimo a todos: a reinstituição da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Inteiramente destinada à reconstrução gaúcha, e efetivamente provisória, talvez com duração de 12 meses, a CPMF, em vez de imposto, fará jus ao nome de contribuição, desta vez assumindo o sentido de colaboração de caráter filantrópico para custeio de despesas públicas.

A cruzada pelo soerguimento do Rio Grande merece ser elevada a esforço de guerra. Temos precedentes históricos, como a campanha de subscrição que dom Pedro I liderou em 1823, provendo fundos para reparar a frota com que o almirante Thomas Cochrane iria consolidar a Independência ainda contestada. E a Campanha da Cisplatina, em 1827, na qual muitos brasileiros doaram dinheiro e joias para financiar o conflito no Prata – até a marquesa de Santos, amante do imperador, cedeu, como disse, “um conto de réis para a Guerra do Sul, e 40 mil réis mensais emprestados para o mesmo fim, sem prêmio algum (…)”. Em 1932, paulistas deram alianças à campanha Ouro para o bem de São Paulo, no esforço de financiar a rebelião constitucionalista. Em 1964, os Diários Associados lançaram a campanha Ouro para o bem do Brasil, que serviria para pagar a dívida externa, mas sofreu denúncias de desvio de finalidade. A palavra de ordem atual é CPMF para o bem do Rio Grande do Sul.

A tessitura, na formação social brasileira, da coesão e da solidariedade no espírito do povo amalgamou o sentimento nativista que brotou entre nós na guerra aos holandeses que invadiram o Nordeste no século 17 – combate que reuniu proprietários portugueses e brasileiros, trabalhadores rurais, comerciantes, bandeirantes, padres, mulheres, índios, negros e mamelucos do nosso caldeirão étnico. Ali, como em outras rupturas históricas, a exemplo da Independência e da Abolição, forjou-se uma matriz que modelou a vontade nacional. Como observou o historiador José Honório Rodrigues em Aspirações Nacionais, resultamos num povo de grandes qualidades humanas, “com uma sensibilidade que é a chave do caráter nacional. Uma bondade, uma humanidade profunda, um entusiasmo essencial”.

Os facciosismos dos ciclos políticos não elidem esses valores. Eles se apresentam a mancheias após a eclosão da tragédia gaúcha. É patente o assomo do sentimento de pertencimento e de identidade manifestos na Nação. A fraternidade coletiva projeta-se soberana, acima das diferenças de qualquer natureza, postergando-as momentaneamente, em favor da causa maior, mas sem eliminá-las da arena democrática, do mercado de ideias e de interesses.

A cobrança de um porcentual ínfimo nas operações financeiras (variou de 0,2% a 0,38%), destinada ao fundo de recuperação do Rio Grande do Sul, administrado por um comitê gestor com representantes dos governos e da iniciativa privada, será a continuidade daquela vontade nacional, materializada na universalidade de uma ação coletiva. Se a CPMF gerou controvérsias nos 11 anos em que vigorou, desta vez terá o condão de tecer uma corrente virtuosa e benfazeja na comunidade nacional.

Aldo Rebelo – Secretário de Relações Internacionais da prefeitura de SP; foi ministro da Defesa e presidente da Câmara dos Deputados

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